A Fuvest 2025 incluiu, pela primeira vez, uma obra moçambicana escrita por uma mulher entre suas leituras obrigatórias. "Balada de Amor ao Vento", de Paulina Chiziane, marca um ponto de virada ao inserir a perspectiva feminina nas discussões literárias do vestibular.
O romance denuncia a opressão imposta pela poligamia e o papel submisso muitas vezes reservado às mulheres. Com olhar simbólico e crítico, a autora desvela as feridas sociais herdadas do colonialismo e do patriarcado.
O que você vai ler neste artigo:
Uma narrativa centrada na mulher africana
"Balada de Amor ao Vento", publicado em 1990, é considerado o primeiro romance escrito por uma mulher em Moçambique. A autora Paulina Chiziane rompeu com a tradição masculina da literatura moçambicana, trazendo à tona as experiências e dores das mulheres diante de uma estrutura cultural que legitima a poligamia.
Ambientado em uma aldeia rural, o enredo acompanha Siti, mulher apaixonada por Tony, um homem que vive relações simultâneas com várias mulheres. Nesse sistema, aceito socialmente, as personagens femininas disputam a atenção masculina, ficando presas a uma lógica de submissão, rivalidade e abandono.
Crítica à poligamia e ao patriarcado
A obra assume um caráter profundamente crítico ao mostrar a poligamia não como um mero traço cultural, mas como uma construção social que reforça a dominação masculina. Tony é apresentado como símbolo do poder patriarcal, movendo-se livremente entre os lares e manipulações emocionais, enquanto as mulheres lutam para manter algum espaço afetivo.
Paulina Chiziane, no entanto, evita cair em uma demonização simplista da tradição. Ao contrário, sua escrita mostra como a cultura pode ser tanto refúgio quanto prisão. A aldeia, com suas práticas ancestrais, abriga tanto formas de pertencimento quanto mecanismos opressores. Nesse dilema, emerge a resistência de Siti, que vai aos poucos construindo uma consciência crítica sobre seu papel.
Narrativa não linear e linguagem oral
Um dos traços mais marcantes da obra é a linguagem inspirada na oralidade africana. Frases curtas, repetições e ritmo cadenciado lembram a tradição dos contadores de história. Isso aproxima o romance de uma dimensão comunitária e coletiva, na qual a experiência de Siti representa muitas outras vividas por mulheres em contextos semelhantes.
A estrutura narrativa também desafia os padrões ocidentais. Não há divisão rígida em capítulos nem uma progressão linear. A cronologia é interrompida por memórias, desabafos e episódios soltos, à maneira do fluxo de consciência. Isso torna a leitura mais sensorial e emotiva, mas também exige interpretação crítica e atenção ao simbolismo intrínseco nos acontecimentos.
Personagem feminina em transformação
Siti não é apenas observadora de sua própria dor. Ao longo da narrativa, ela se transforma. Sai da passividade para o enfrentamento. Questiona a lógica imposta pela sociedade da aldeia, desafia seu "marido comum" e as normas que sustentam a poligamia. Sua trajetória torna-se símbolo do despertar de uma consciência que recusa o sofrimento como destino e que exige visibilidade e voz.
Mesmo cercada por um ambiente adverso, ela encontra apoio em outras mulheres – laços fortalecidos pela dor compartilhada. A sororidade torna-se resistência e, gradualmente, as personagens retomam o poder sobre suas histórias e corpos.
Contribuições de Paulina Chiziane à literatura africana
O impacto de Paulina Chiziane se estende além da autoria feminina. Sua contribuição também reside na forma como reconfigura o romance africano, tradicionalmente voltado às lutas anticoloniais ou questões nacionais. Em seu trabalho, o foco se desloca para o íntimo, para o cotidiano das mulheres, para os afetos feridos, as trincheiras da casa e as redes de opressão silenciosa.
Ela projeta uma literatura ao mesmo tempo política e subjetiva. Seus personagens representam classes, papéis sociais e estruturas de dominação, mas também carregam emoções pungentes, escolhas difíceis e contradições humanas.
Reflexões para o vestibulando
A inclusão de "Balada de Amor ao Vento" no vestibular da Fuvest amplia o olhar sobre os cânones literários cobrados historicamente. Ela obriga os estudantes a refletirem não apenas sobre a história de Moçambique, mas sobre as amarras culturais compartilhadas em muitas sociedades, inclusive no Brasil.
O romance exige um leitor sensível às nuances sociais, às vivências femininas em contextos adversos e atento ao estilo de escrita que rompe com a lógica padrão. Analisar personagens, conflitos, linguagem e desfecho, nesse caso, envolve observar sobretudo como a literatura serve como forma de denúncia e reinvenção social.
Dessa forma, Paulina Chiziane rompe o silêncio histórico e abre espaço para outras vozes femininas africanas no debate educacional brasileiro. A leitura de sua obra é, portanto, um mergulho necessário nos limites da tradição e na potência da rebeldia.
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